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banhos, memórias, pálpebras: "para lavar e se fazer de novo"

entre a parede de gelo e o muro verde, a cidade cinza encurta os dias e embora as tardes continuem demoradamente amarelas como sempre as noites não me pertencem como antes eu queria ter mais tempo para compor uma balada enquanto o café coa ou uma prosa que ecoe mais do que as cordas mas as notam carregam tantas inconsistências que as coisas escapam aos meus olhos então volto a pensar em paredes e na vida que existe além dos cadernos eu queria ter tempo antes que escorram pelo ralo as palavras de manutenção arrancadas com força do meu peito em dias tão curtos, o que respiro parece valer menos: só os banhos me salvam me aborrece lembrar o que não tornei real porque guardei me entristece saber que, por não ter lhes dito, algumas coisas sentidas jamais se tornaram matéria do mesmo modo, as mulheres que amei, à quem dedico tudo o que escrevo, sequer existem mais porque não antecipei as suas partidas. muito menos admiti o quanto me habitavam. hoje percebo que todo o proble

cristais, vermelho, lábios: bastaria olhar?

para mim, algumas coisas são belas simplesmente por existirem... naturalmente me roubam os olhos, verdadeiros artefatos de admiração. como os cristais, não porque remetem ao branco (já que são de cores variadas, como os lábios) ou pela aparência (erradamente associada à "perfeição")... pois como são imperfeitos! é o brilho a causa da minha afeição, ou melhor, a extensão dele, uma vez que invade o meu corpo e lhe adorna lentamente, a depender do cristal e do tempo que este me prende às suas faces. as suas imperfeições e imprecisões me fazem esquecer as minhas próprias. alguns são tão frágeis, quebravéis, que ao tomar em mãos, parecem parte de mim; como o amor e outras substâncias... vejo nas pessoas semelhante brilho, e por coincidência, ambos, cristais e pessoas, estão propensos a estilhaçarem: como o gesso e a maioria das coisas que possuem corpo. não fosse pelo sangue, algumas pessoas teriam formatos de cristais. mas o sangue existe e é vermelho, como os lábios quando

Eu sabia

comecei amando só uma parte de você a única parte que eu tinha eu não sabia nada sobre o resto de você achei que essa outra parte também podia ser minha  eu não sabia nada sobre mim eu não sabia nada de nada  talvez por isso a insistência  nessas coisas que morrem em segundos  embora construídas ao longo de uma vida  eu só queria lhe ter  mas sabia que não podia  e morri diversas vezes por isso 

Ventre

a lágrima pede ombro a camisa suja de dor o ventre é uma resposta  [aos menores atos a vida pede socorro  os quadros, tinta no ventre habitam corpos [gelados  vida, pede socorro  há fantasmas, ainda  sob o ventre rios são [entalhados  entre, esqueça a existência das musas você pode viver hoje, ainda  a vida não está restrita aos  [agasalhos 

a injustiça dos que sentem

por que parece erro abrir tanto o corpo se, em tese, somos tratados pelo mar  com a mesma injustiça dos que não voltam? se é com coragem, sobretudo, que movo ao papel o que sou feito, por que o estigma que me acompanha?  o que faço da palavra, se não basta que traduza o que sinto? adianta continuar, mesmo que o dia não valha uma lágrima?  o olhar dos outros é um açoite, por isso, vale mais que as histórias não me pertençam... mas pertencem, ainda  cabe a mim os cenários todas as sombras e mulheres partilham a força do que precisava acontecer  foi no meio disso que a palavra me acometeu  não falo estritamente da poesia  falo do que coube na pele  antes mesmo de eu aceitá-la  e receio que ela restará comigo, embora eu lhe recuse insistentemente embora eu siga, restará  como um sigilo que mora no meu corpo 

o perfume dura mais do que a promessa

o meu corpo tem  reagido a sua partida  de formas estranhas basta amanhecer  para a sua falta surgir  como se  agarrada às minhas entranhas  a culpa é minha por ter lhe deixado ir eu só não queria te ver aos prantos  se eu tivesse pedido, você ficaria? viveria um amor a ser eternamente fingido ou preferiria a angústia solitária dos banhos?  de toda forma,  é difícil sem você aqui., antes de sair de casa, a minha boca antecipa a ausência  do seu beijo  e resseca  caminho de lábios cerrados você não deveria ter ido não depois da noite do esmalte do gengibre arranhando a garganta  das caminhadas até o trabalho  das ligações nos intervalos  das pernas batucando os segundos  que restavam   para eu voltar, lhe ver e descobrir  o que havia de novo em seu corpo  porque cada vez que eu lhe tocava  era diferente  era melhor  a cada dor sofrida você ficava maior mais bela apenas a minha pele ousava enrugar  parecia até  que você se alimentava de mim ainda assim, você deveria ter ficado, não faz s

costura

"o retorno é na saída do porto" enquanto esperava algo que me devolvesse os olhos  ignorei a existência  de outras lentes e a indiscutível beleza embutida em cada uma delas  às vezes  o outro vê melhor  embora estreito  a extensão do braço  pouco importa  se o que nos comove  está na terra  na matéria que lhe envolve  onde estão alojadas  todas as coisas que morrem  queimam  e renascem